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"Luiz Carlos Prestes entrou vivo
no Panteon da História.  
Os séculos cantarão a 'canção de gesta'
dos mil e quinhentos homens da
Coluna Prestes e sua marcha de quase
três anos através do Brasil.
Um Carlos Prestes nos é sagrado.
Ele pertence a toda a humanidade.
Quem o atinge, atinge-a."

(Romain Roland, 1936)


Apresentação de ?Carta aos Comunistas?

Anita Leocádia Prestes*

Divulgada em março de 1980, inicialmente entre os militantes comunistas, a ?Carta aos Comunistas? de Luiz Carlos Prestes reflete um momento histórico especial na trajetória do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com a anistia dos presos e perseguidos políticos, decretada pelo Governo João Figueiredo em agosto de 1979, e a relativa ?abertura? então em curso promovida pela ditadura militar implantada no Brasil a partir do golpe de 1964, tornou-se possível o regresso ao país dos exilados políticos. Dentre estes, Prestes era um dos mais destacados. Sua chegada ao aeroporto do Galeão (RJ), em 20 de outubro de 1979, transformou-se em uma grande manifestação de júbilo popular e de entusiasmo dos comunistas, que aguardavam sua liderança máxima, à espera de uma saída para a crise que reconhecidamente abalava as estruturas do PCB.

Nos anos setenta, diante da feroz repressão desencadeada pela ditadura contra as forças de esquerda no Brasil e, em particular, contra o PCB ? que teve dez membros do seu Comitê Central ?desaparecidos? -, uma parte de sua direção havia sido deslocada para a Europa, incluindo, o secretário-geral do Partido, Luiz Carlos Prestes.  No exílio, a direção partidária fora reorganizada, tendo em vista a recuperação do PCB no Brasil, cuja estrutura havia sido profundamente golpeada pela repressão policial.

Pretendia-se também contribuir para o avanço da luta contra a ditadura e, em particular, para a intensificação da campanha internacional pela anistia ampla, geral e irrestrita no Brasil.
No exílio europeu, a crise vivida pelo PCB tornou-se particularmente evidente. As divergências ideológicas e políticas no seio do Comitê Central, inicialmente veladas, viriam a explicitar-se no decorrer daqueles anos ?de chumbo?, que antecederam a anistia e o regresso dos exilados ao Brasil.

Anteriormente, em 1958, a grave crise partidária, provocada, em grande medida, pelas repercussões mundiais do XXº Congresso do PCUS, havia sido superada com a aprovação pelo Comitê Central do PCB da ?Declaração de Março?[1]daquele ano. Na elaboração desse documento, Prestes desempenhara papel decisivo, tendo assegurado a reunificação do Partido. Mas, nessa ocasião, ele já manifestara divergências em relação à nova orientação política adotada pela direção do PCB. O secretário-geral, para garantir a unidade do Partido, tivera que fazer concessões e buscar uma conciliação entre as posições de ?esquerda? e de ?direita? dos dirigentes partidários da época. A Declaração de 1958 representou, no fundamental, uma guinada para a direita na política do PCB, uma vez que postulava a conquista de um ?governo nacionalista e democrático?, cujo objetivo seria contribuir para o desenvolvimento de um capitalismo autônomo no Brasil. Na realidade, o capitalismo dependente e associado ao imperialismo vinha se afirmando no país, revelando a inviabilidade da proposta dos comunistas.

Em artigo publicado no órgão oficial do PCB, a Voz Operária, Prestes escrevia a respeito da Declaração de 1958:

?A crítica de nossos erros políticos pode conduzir agora ao erro oposto, à preocupação exclusiva com o movimento que se  rocessa gradualmente, abandonando a meta revolucionária da classe operária. Ora, uma tática que se baseia apenas nas conquistas imediatas e não objetiva atingir as transformações radicais nada tem de uma tática revolucionária, mas, pelo contrário, é uma tática reformista, que nos colocaria a reboque  da burguesia.?.[2]

O secretário-geral do Partido revelava, portanto, sua preocupação com a tendência reformista que ganhara força no processo de revisão dos desvios ?esquerdistas? anteriormente verificados na orientação política dos comunistas brasileiros, principalmente a partir do Manifesto de Agosto de 1950. Tendência esta que iria acentuar-se nas resoluções do Vº e VIº Congressos do PCB, realizados respectivamente em 1960 e 1967.

No Informe de Balanço do Comitê Central, apresentado por Prestes ao VIº Congresso do PCB, afirmava-se que ?ao lutarmos pela revolução nacional e democrática, não lutamos pelo desenvolvimento capitalista, mas por um desenvolvimento econômico democrático e independente, que abrirá caminho para o socialismo?, concluindo que ?marchamos assim para uma solução revolucionária, que repele o capitalismo como perspectiva histórica?.[3] Mais adiante, no mesmo documento, escrito por Prestes, reafirmava-se que os comunistas ?orientam sua ação no sentido de um governo revolucionário?[4], tese que não teve aceitação no VIº Congresso e não foi, portanto, incorporada à Resolução Política[5] então aprovada.

Nos anos setenta, particularmente durante o exílio, Prestes viria a consolidar sua postura divergente em relação à orientação política adotada pela direção do PCB. Nesse sentido, teve grande importância o estudo por ele empreendido das mudanças em curso na economia brasileira e na vida nacional. A leitura de obras importantes como ?A Revolução Burguesa no Brasil? de Florestan Fernandes, aliada à uma análise aprofundada das transformações por que passara o capitalismo no país, levaram o secretário-geral do PCB a uma séria revisão da estratégia e tática  seguidas pelo PCB. Para Prestes, na segunda metade dos anos setenta, tornara-se clara a necessidade de empreender uma virada drástica em relação à linha política aprovada no VIº Congresso do Partido:

?(...) É necessário, agora, mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento operário e popular do momento que hoje atravessamos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos resposta para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados pela própria vida (...)?.[6]

Diante de tal situação, qual viria a ser a atitude da maioria do Comitê Central do PCB? Como é lembrado por Prestes, a direção partidária negava-se a ?uma séria e profunda autocrítica?. Recusava-se a ?analisar com espírito crítico se são de todo acertadas as resoluções? do VIº Congresso, na pretensão de ?apresentá-las como um dogma indiscutível para, com base nelas, exigir uma suposta unidade partidária, que lhe permita encobrir e conservar por mais algum tempo a atual situação do Partido e de sua direção?[7].

Em nome de uma suposta unidade partidária, o Comitê Central do PCB, na realidade, trilhava o caminho de tentar garantir sua própria sobrevivência a qualquer preço, ou seja, manter o status-quo, recusando-se a realizar as mudanças necessárias tanto no terreno político quanto no da organização partidária. Para Prestes, a política de organização deveria estar sempre associada estreitamente ao caráter da política geral do Partido e subordinada às suas metas revolucionárias. Segundo Prestes, o abandono dos objetivos revolucionários pela direção do PCB a levara a assumir atitudes reformistas e de capitulação diante da burguesia e dos inimigos de classe.

Tendo assumido a responsabilidade principal pelos erros cometidos pelo Partido[8], Prestes escreve na ?Carta aos Comunistas?:

?O oportunismo, o carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a falta de princípios e a total ausência de democracia interna no funcionamento da direção, os métodos errados de condução da luta interna, que é transformada em encarniçada luta pessoal, em que as intrigas e calúnias passam a ser a prática corrente da vida partidária adquiriram tais proporções, que me obrigam a denunciar tal situação a todos os comunistas.?[9]

Diante da situação crítica vivida pelo PCB, Prestes apela a todos os militantes para que ?tomem os destinos do movimento comunista em suas mãos?[10], mobilizando-se para a conquista da legalidade do Partido e a realização do seu VIIº Congresso em condições efetivamente democráticas, condenando, ao mesmo tempo, qualquer acordo   com a ditadura para a conquista da legalidade. ?Compromisso que colocaria o Partido a reboque da burguesia e a serviço da ditadura e inaceitável, portanto, à classe operária e a todos os verdadeiros revolucionários? [11]. Compromisso, que, afinal, foi assumido pelo Comitê Central do PCB, após o regresso dos seus membros do exílio.

Ao abordar as perspectivas políticas para o movimento comunista no Brasil, Prestes defendia a tese de que ?a luta pela democracia em nossa Terra? deveria ser ?parte integrante da luta pelo socialismo?.[12] Desmentindo uma suposta contraposição, que com freqüência lhe era atribuída  , entre ?frente de esquerda? e ?frente democrática?, Prestes escrevia:

?(...) Para chegarmos à construção de uma efetiva frente democrática de todas as forças que se opõem ao atual regime, é necessário que se unam as forças de ?esquerda? ? quer dizer, aquelas que lutam pelo socialismo - no trabalho decisivo de organização das massas ?de baixo para cima?; que elas se aglutinem, sem excluir também entendimentos entre seus dirigentes, com base numa plataforma de unidade de ação, e que, dessa maneira, cheguem a reunir em torno de si os demaissetores oposicionistas, tornando-se a força motriz da frente democrática.?[13]

Tal unidade não seria alcançada sem a elaboração de um programa que tivesse como objetivo estratégico a ?liquidação do poder dos monopólios nacionais e estrangeiros e do latifúndio?. Prestes propunha a formação de um ?bloco de forças antimonopolistas, antiimperialistas e antilatifundiárias, capazes de assumir o poder e de dar início a essas transformações?.  Para ele, tal poder, ?pelo seu próprio caráter, significará um passo decisivo rumo ao socialismo?.[14]

A ?Carta aos Comunistas? teve grande repercussão e levou numerosos militantes comunistas a tentarem ?salvar? o PCB, reorganizá-lo ou estruturar novas organizações em bases verdadeiramente revolucionárias. Intentos estes fracassados e reveladores da inexistência das condições necessárias para a organização imediata de um partido revolucionário, o que foi compreendido por Prestes, levando-o, nos últimos dez anos de sua vida, a desaconselhar qualquer tentativa nesse sentido.

Na realidade, não era só o PCB que atravessava grave crise. Tratava-se de uma crise do movimento comunista internacional e do chamado ?socialismo real?. Crise esta que Prestes havia detectado no PCB uma década antes de a mesma ?explodir? no cenário mundial. A ?Carta aos Comunistas? antecipou questões que viriam a colocar-se, com grande intensidade, para os comunistas no mundo inteiro, uma década mais tarde. Muitas dessas questões mantêm sua atualidade.

Publicado em PENNA, Lincoln de Abreu (org.). Manifestos Políticos do Brasil contemporâneo. R.J.: E-papers, 2008.


[1] Cf. PCB: vinte anos de política 1958-1979 (documentos). São Paulo, LECH ? Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 3 a 27.

* Professora Dra. do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ.

[2]Idem, p. 35

[3] Idem, p. 97, grifo meu.

[4]Idem, p. 133, grifo meu.

[5]Idem, p.153 a 190.

[6]PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas. São Paulo, Alfa-Omega, 1980, p.12.

[7] Idem, p. 15.

[8]Idem, p. 16.

[9]Idem, p. 16.

[10]Idem, p. 17.

[11]Idem, p. 21-22.

[12]Idem, p. 24.

[13]Idem, p. 30.

[14]Idem, p. 34-35.

 

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Última atualização em Dom, 04 de Outubro de 2009 19:33