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"Luiz Carlos Prestes entrou vivo
no Panteon da História.  
Os séculos cantarão a 'canção de gesta'
dos mil e quinhentos homens da
Coluna Prestes e sua marcha de quase
três anos através do Brasil.
Um Carlos Prestes nos é sagrado.
Ele pertence a toda a humanidade.
Quem o atinge, atinge-a."

(Romain Roland, 1936)


Carta aos Comunistas

Luiz Carlos Prestes*

Companheiros e amigos!

De regresso ao Brasil, pude, nos meses já de­corridos, entrar em contato direto com a realidade nacional e melhor avaliar os graves problemas que enfrenta o PCB, o que me leva ao dever de diri­gir-me a todos os comunistas, a fim de levantar algumas questões que, em minha opinião, torna­ram-se candentes para todos os que, em nosso país, de uma ou de outra forma, interessam-se pela vitória do socialismo em nossa terra. E é baseado no meu passado de lutas e de reconhecida dedicação à causa revolucionária e ao PCB, que me sinto com a autoridade moral para dizer-lhes o que penso da situação que atravessamos.

Sinto-me no dever de alertar os companheiros e amigos para o real significado da vasta campa­nha anticomunista que vem sendo promovida nas páginas da imprensa burguesa. Campanha esta visivelmente orquestrada pelo regime ditatorial, visando a desmoralização, a divisão e o aniquila­mento do PCB. Fica cada vez mais evidente que, através de intrigas e calúnias, o inimigo de classe ? após nos ter desferido violentos golpes nos últimos anos ? pretende agora minar o PCB a partir de dentro, transformando-o num dócil ins­trumento dos planos de legitimação do regime. Este é o motivo pelo qual as páginas da grande imprensa foram colocadas à disposição de alguns dirigentes do PCB, enquanto em relação a outros o que se verifica é o boicote e a tergiversação de suas opiniões. Basta lembrar a matéria publicada no Jornal do Brasil de 3 de fevereiro último, quando esse jornal falseia a verdade ao dizer que me recusei a manifestar minha opinião e, ao mes­mo tempo, serve de veículo a uma série de calúnias e acusações que lhe teriam sido fornecidas por algum dirigente que não teve a coragem de se identificar.

Seria de estranhar, se não estivesse claro o objetivo deliberado de liquidação do PCB, a preocupação, revelada insistentemente, pela imprensa burguesa com a democracia interna e a disciplina em nossas fileiras. Os repetidos editoriais comentários que vem sendo publicados ultimamente a esse respeito são sintomáticos. Demonstram o propósito do regime de desarticular as forças de opo­sição e, em particular, os comunistas para melhor pôr em prática a estratégia de realizar mudanças em sua estrutura política visando preservar os inte­resses dos grupos monopolistas nacionais estran­geiros que representa.

Diante de tal situação não posso calar por mais tempo. Tornou-se evidente que o PCB não está exercendo um papel de vanguarda e atravessa uma séria crise já flagrante e de conhecimento público, que está sendo habilmente aproveitada pela reação no sentido de tentar transformá-lo num partido reformista, desprovido do seu caráter revolucionário e dócil aos objetivos do regime ditatorial.
Devo destacar que, não obstante o heroísmo e abnegação dos militantes comunistas que sacrificaram suas vidas e dos demais que contribuíram ativamente na luta contra a ditadura e para as conquistas já alcançadas por nosso povo, e pelas causas justas por que tem combatido o PCB em sua longa existência, é necessário, agora, mais do que nunca, ter a coragem política de reconhecer que a orientação política do PCB está superada e não corresponde à realidade do movimento ope­rário e popular do momento que hoje atraves­samos. Estamos atrasados no que diz respeito à análise da realidade brasileira e não temos respos­tas para os novos e complexos problemas que nos são agora apresentados pela própria vida, o que vem sendo refletido na passividade, falta de inicia­tiva e, inclusive, ausência dos comunistas na vida política nacional de hoje.

A crise que atravessa o PCB se expressa tam­bém na falência de sua direção que, entre outras graves deficiências, não foi capaz de preparar os comunistas para enfrentar os anos negros do fas­cismo, facilitando à reação obter êxito em seu pro­pósito de atingir profundamente as fileiras do PCB, desarticulando-o em grande parte. Não foi a dire­ção do PCB capaz nem ao menos de cumprir o preceito elementar de separar com o necessário rigor a atividade legal da ilegal. Inúmeros com­panheiros tombaram nas mãos da reação em con­seqüência da incapacidade da direção, que não tomou as providências necessárias para evitar o rude golpe que atingiu nossas fileiras nos anos de 1974 e 1975.

Ao mesmo tempo, graves acontecimentos tiveram lugar na direção do PCB, que, devido à situação de clandestinidade em que nos encontra­mos, estou impossibilitado de revelar de público, Tais circunstâncias estão sendo utilizadas pela atual direção do PCB para desencadear uma onda de boatos e calúnias e para, numa tentativa deses­perada de se manter no poder e conservar o status ­quo, ocultar a verdade da maioria dos compa­nheiros. Assim, vem sendo levantada a bandeira da unidade do PCB para na realidade encobrir uma atividade divisionista e de simples acoberta­mento de graves fatos ocorridos na direção. Na verdade, uma real unidade em torno de objetivos politicamente claros e definidos inexiste há muito tempo.

Nessas condições, sinto-me no dever de aler­tar os comunistas para a real situação da atual direção do PCB: uma direção que não funciona como tal e não é capaz de exercer o papel para o qual foi eleita, um Comitê Central em que não é exercido o princípio da direção coletiva ? caracterizado pela planificação e o controle das resolu­ções tomadas pela maioria ?, no qual reina a indisciplina e a confusão, em que cada dirigente se julga no direito de fazer o que entende. Na prática, inexiste uma direção do PCB. A situação chegou a tal ponto que fatos e assuntos reservados, que eram de conhecimento exclusivo dos membros do CC, estão sendo revelados à polícia por intermédio das páginas da imprensa burguesa, causando a justa indignação da grande maioria de nossos com­panheiros e amigos.

Sem me propor, nesta carta, a analisar as causas profundas que determinaram a situação a que chegou o movimento comunista em nossa terra, considero, no entanto, necessário tornar claros os meus pontos de vista sobre algumas ques­tões fundamentais, de forma que os companheiros e amigos possam julgar sobre sua justeza. Ao mes­mo tempo, quero deixar claro que não me eximo de minha parcela de responsabilidade e me consi­dero o principal responsável pelos erros e defor­mações existentes no PCB. Minha atitude não é de fugir à necessária autocrítica ? em palavras e na prática ?, mas, ao contrário, de tomar a inicia­tiva de torná-la pública, procurando, assim, con­tribuir para o avanço da luta pelos ideais socia­listas em nosso país e para a reorganização do movimento comunista do Partido Comunista.

Numa atitude diametralmente oposta, a atual direção do PCB ? apesar dos graves acontecimentos ocorridos nos últimos anos ? nega-se a uma séria e profunda autocrítica. Quando muito, satisfaz-se com a realização de repetidas e já des­moralizadas autocríticas formais, que, entretanto, nunca se tornam uma realidade palpável. Assim, nega-se a direção atual a reconhecer que a situação do país sofreu grandes transformações, tornando necessária uma ampla discussão democrática de todos os problemas, incluindo as resolu­ções do último Congresso do PCB. Recusa-se a analisar com espírito crítico se são de todo acerta­das as resoluções desse Congresso e pretende ainda agora apresentá-las como um dogma indiscutível para, com base nelas, exigir uma suposta unidade partidária, que lhe permita encobrir e conservar por mais algum tempo a atual situação do partido e de sua direção.

Na verdade, a justa preocupação da maioria dos comunistas com a unidade do PCB vem sendo utilizada pela atual direção como um biombo para tentar ocultar a falta de princípios reinante nessa direção, o apego aos cargos e postos, o oportunismo dos que mudam de posição política para atender a interesses pessoais, a tradicional conci­liação em torno de formulações genéricas que nada definem e que visam apenas a manutenção do status quo, deixando, ao mesmo tempo, as mãos livres para que cada dirigente faça o que bem entenda. Citarei apenas um exemplo: o mesmo Comitê Central que em outubro de 1978 aprovara e distribuíra ao partido um documento político, contra o qual votaram apenas dois membros da direção, poucos meses depois, no começo de 1979, se propunha a aprovar um novo documento com orientação política oposta ao primeiro, sem antes ter feito um balanço da aplicação e dos resultados obtidos com a política apresentada em outubro de 1978. O meu repúdio, na qualidade de secretário-geral do PCB, a tal tipo de procedimento levou a que a maioria do CC, revelando mais uma vez sua verdadeira face oportunista e total falta de princípios, recuasse e se chegasse à aprovação de um documento de conciliação, anódino e inexpres­sivo, em maio do ano passado.

O oportunismo, o carreirismo e compadrismo, a falta de uma justa política de quadros, a falta de princípios e a total ausência de democracia interna no funcionamento da direção, os métodos errados de condução da luta interna, que é transformada em encarniçada luta pessoal, em que as intrigas e calúnias passam a ser prática corrente da vida partidária, adquiriram tais proporções, que me obrigam a denunciar tal situação a todos os comu­nistas. Não posso admitir que meu nome continue a ser usado para dar cobertura a uma falsa uni­dade, há muito inexistente. Reconhecendo que sou o principal responsável pela atual situação a que chegaram o PCB e sua direção, assumo a respon­sabilidade de denunciá-la a todos os companheiros, apelando para que tomem os destinos do movi­mento comunista em suas mãos.

Quero lembrar ainda que, para cumprir o papel revolucionário de dirigir a classe operária e as massas trabalhadoras rumo ao socialismo, é necessário um partido revolucionário que, baseado na luta pela aplicação de uma orientação política correta, conquiste o lugar de vanguarda reconhecida da classe operária. Um partido operário, pela sua composição e pela sua ideologia, em que a democracia interna, a direção coletiva e a unidade ideológica, política e orgânica seja uma realidade construída na luta. Somos obrigados a reconhecer que este não é o caso do PCB. Por isso mesmo, tornou-se imperioso para todos os comunistas tomar consciência da real situação existente e começar a reagir, formulando novos métodos de vida partidária realmente democráticos e efetivamente adequados às tarefas que a luta revolucionária coloca diante de nós; é necessário reagir às arbitrariedades e deformações que já atingem propor­ções alarmantes e dar início a um processo de discussão realmente democrático, que venha tornar possível a eleição, em todos os níveis partidários, de direções que realmente sejam a expressão de­mocrática da vontade da maioria dos comunistas. É necessário lutar por um outro tipo de direção, inteiramente diferente da atual, com gente nova, com comunistas que efetivamente possuam as qualidades morais indispensáveis aos dirigentes de um partido revolucionário. Não é mais admissível a perpetuação da atual direção, que está levando o PCB à falência em todos os terrenos.

A convocação do VII Congresso do PCB, dentro dessa perspectiva, deve ser transformada no início de um processo de ampla discussão, por parte de todos os comunistas, não só das linhas gerais de nossa política, como de uma série de aspectos da atividade da direção. Esta é a oportu­nidade de cobrar da direção tudo que aconteceu nos últimos anos: a falta de preparação para en­frentar a repressão fascista e o conseqüente des­mantelamento de todo o aparelho partidário; as prisões e os desaparecimentos de tantos compa­nheiros e amigos; a ausência de democracia inter­na, o arbítrio, a falta de planejamento e controle das tarefas decididas; o comportamento dos dirigentes diante do inimigo de classe; a execução prática do chamado ?desafio histórico? aprovado no VI Congresso e a falta de empenho em orga­nizar o partido na classe operária; a atividade política da direção nas diferentes frentes de tra­balho; a orientação política seguida na Voz Operária; e muitos outros aspectos do trabalho de direção.

Considero imprescindível destacar que o VII Congresso só cumprirá um papel realmente reno­vador, tanto no que diz respeito à elaboração de uma orientação política correta e adequada às novas condições existentes no país e verdadeira­mente representativa da vontade da maioria dos comunistas, quanto no que concerne à eleição de um novo tipo de direção à altura dessa nova orien­tação, se os debates preparatórios e todos os pro­cedimentos de sua realização forem realmente de­mocráticos. Não posso admitir, nem concordar com a volta ao ?arrudismo?, à utilização de metó­dos discricionários e autoritários na condução da luta interna, à manipulação dos debates, à rotu­lação das pessoas com as mais variadas etiquetas do tipo ?esquerdista?, ?eurocomunista?, ?orto­doxo?, ?duro? etc. Não é admissível que se con­tinue a usar de expedientes, como a nomeação de delegados a conferências partidárias, para as quais deveriam ser democraticamente eleitos pelas orga­nizações a que pertencem.

A democracia no processo de realização do VII Congresso precisa ser defendida com empenho por todos os comunistas. E necessário que todos ? e  em particular os dirigentes ?falem aberta­mente o que pensam; devemos repudiar o compor­tamento dos que calam de público para falarem pelas costas ou transmitirem informações sigilosas à imprensa burguesa sem ter sequer a coragem de se identificar.

Quero ainda dizer que tenho conhecimento do quanto estou sendo caluniado e atacado pelas costas. Isso é mais uma prova dos métodos falsos a que me referi acima. Devo deixar claro que, não obstante ser o primeiro a achar que, inclusive pela minha idade já avançada, deveria deixar a dire­ção do PCB, só poderei concordar com a minha substituição num congresso realmente democrá­tico. Não aceitarei meu afastamento decidido por algum tipo de congresso-farsa, manipulado e anti­democrático, em que os próprios destinos do PCB e de nossa causa revolucionária corram perigo.

Sei que poderei vir a ser derrotado no Con­gresso; o importante, entretanto, é que este seja realmente democrático e verdadeiramente repre­sentativo da maioria dos comunistas. E para isso é necessário que sejam criadas as devidas condi­ções, pois na situação atual, de virtual desmante­lamento do PCB pela reação, de permanência da Lei de Segurança Nacional e de séria crise interna, são praticamente impossíveis um debate e uma participação realmente democráticos num con­gresso realizado na clandestinidade. Temos que reconhecer que, nessas condições, o vil congresso seria uma farsa, inaceitável para a grande maioria dos comunistas. Trata-se, portanto, de prioritariamente dar início a uma ampla campanha pela legalização do PCB, desmascarando o anticomunismo daqueles que a pretexto de defender uma suposta democracia pugnam pela manutenção dos odiosos preceitos da Lei de Segurança Nacional que proíbem a reorganização do Partido Comunis­ta. É preciso esclarecer as amplas massas de nosso povo, mostrando-lhes que o PCB sempre esteve nas primeiras fileiras de todas as lutas democráticas em nosso país e sempre foi a principal vítima da repressão e do fascismo.

É necessário deixar claro que a legalização do PCB terá que ser uma conquista do movimento de massas e de todas as forças realmente democrá­ticas em nosso país. Os trâmites legais junto ao Tribunal Superior Eleitoral estarão fadados ao fra­casso, se a legalidade do PCB não se transformar numa exigência das massas, que, nas rua, impo­nham sua vontade, como o fizeram em 1945. A dita­dura jamais nos concederá a legalidade sem luta; o que ela tenta, neste momento, é, aproveitando-se da crise interna do PCB, forçá-lo a um acordo. Acordo este que significaria um compromisso com a ditadura, incompatível com o caráter revolucio­nário e internacionalista do PCB, compromisso que colocaria o partido a reboque da burguesia e a serviço da ditadura e inaceitável, portanto, à classe operária e a todos os verdadeiros revolucionários.

Empenhar-se numa intensa campanha peja legalização do PCB e pela conseqüente realização do VII Congresso na legalidade não deve, entre­tanto, servir de obstáculo ao início do debate pre­paratório para o Congresso, que poderá ir-se ampliando com o desenvolvimento da própria campanha pelo registro legal do PCB. A luta pela nossa legalidade é inseparável do empenho para que a democracia interna venha a ser uma reali­dade. Devemos ter claro que num país como o nosso, com a complexidade dos problemas que temos pela frente, é necessário um Partido Comu­nista de massas, o que só poderá se transformar em realidade se vier a ser um partido verdadeiramente democrático, não apenas em seu empenho na luta pela democracia em nossa terra, como também em todos os aspectos de seu funcionamento.

A gravidade da crise que atravessa o PCB, a flagrante ausência de democracia interna e as pro­fundas deformações no terreno da organização não estão dissociadas dos erros e desvios em nossa orientação política. Não se pode separar a elabo­ração de uma estratégia revolucionária da estra­tégia de construção de uma organização revolucio­nária. Ambas se condicionam reciprocamente. A estratégia revolucionária é a condição da eficiên­cia da organização, e a organização é a condição da formulação de uma estratégia correta.

Sem pretender, nesta carta, uma análise aprofundada dos erros a meu ver cometidos na elaboração de nossa orientação política em dife­rentes períodos da história do PCB ? tarefa que me proponho a realizar posteriormente ?, quero apenas me referir a algumas questões que me pa­recem de maior atualidade e urgência, deixando clara minha posição.

Assim, considero importante destacar que, apesar do total arbítrio e do autoritarismo dominantes no país a partir do golpe reacionário de 1964, os governos que se sucederam em 16 anos não resolveram nem um só dos problemas fundamentais da nação. Ao contrário, foram todos agra­vados. Aumentou a miséria dos trabalhadores, agravaram-se as desigualdades sociais, cresceu consideravelmente a dependência do país ao impe­rialismo, tornou-se mais crítica a situação do campo com as transformações capitalistas ocor­ridas na agricultura e as modificações introduzi­das no sistema latifundiário, que levaram, entre outras conseqüências, à proliferação do minifúndio e dos chamados ?bóias-frias?. Simultaneamente, cresceu vertiginosamente a criminalidade e a violência nas grandes cidades, agravaram-se pro­blemas antigos como o do menor abandonado, do desemprego, a falta de assistência médica, o analfabetismo e a prostituição de menores. Isso com­prova, mais uma vez, que o desenvolvimento capi­talista não é capaz de resolver os problemas do povo e nem sequer de amenizá-los.

A solução desses e demais problemas funda­mentais exige transformações sociais profundas, que só poderão ser iniciadas por um poder que efetivamente represente as forças sociais interes­sadas na liquidação do domínio dos monopólios nacionais e estrangeiros e na limitação da proprie­dade da terra, com o fim do latifúndio. E é por isso que a luta atual pela derrota da ditadura e a con­quista das liberdades democráticas é inseparável da luta por esse tipo de poder que, pelo seu pró­prio caráter, representará um passo considerável no caminho da revolução socialista no Brasil.

Vejo a luta pela democracia em nossa terra como parte integrante da luta pelo socialismo. E ­no processo de mobilização pela conquista de obje­tivos democráticos parciais, incluindo as reivindi­cações não apenas políticas, mas também econô­micas e sociais, que as massas tomam consciência dos limites do capitalismo e da necessidade de avançar para formas cada vez mais desenvolvidas de democracia, inclusive para a realização da revo­lução socialista.

É de acentuar que no Brasil sempre domina­ram regimes políticos autoritários. Mesmo nos melhores períodos de vigência da Constituição de 1946, as liberdades sempre foram muito limitadas e, principalmente, os trabalhadores nunca tiveram seus direitos mais elementares respeitados e reco­nhecidos. Tivemos sempre democracia para as eli­tes, enquanto, para as grandes massas de nosso povo, o que sempre existiu foram a violência poli­cial, tanto dos chefes políticos e caciques do inte­rior, quanto das autoridades nas grandes cidades, e o total desrespeito pela pessoa humana e pelos direitos do cidadão.

Justamente por isso, nós, comunistas, ao lutar­mos agora pela derrota da ditadura, devemos fazê-lo esclarecendo as massas e dirigindo-as rumo à conquista de um regime efetivamente democrá­tico. Lutamos agora por um regime em que sejam assegurados os direitos políticos, econômicos e sociais dos trabalhadores. A derrota da ditadura deve levar a um regime em que os trabalhadores tenham o direito de participarem ativamente na solução de todos os problemas da nação; que assegure o desmantelamento do atual aparelho repressivo, que dê fim ao velho ?hábito? das tor­turas, inclusive para os presos comuns; que garan­ta o voto livre, universal e direto para todos os cidadãos, incluindo os analfabetos e militares dele ainda privados; que assegure o direito ao trabalho, à educação e saúde, férias remuneradas e aposen­tadoria para todos os trabalhadores; em que sejam respeitados todos os direitos dos trabalhadores, destacando-se a total independência do movimento sindical do Estado, dos patrões e dos partidos políticos.

Certamente, as características do regime de­mocrático a ser instaurado no país com o fim da ditadura dependerão fundamentalmente do nível de unidade, organização e consciência alcançado pelo movimento operário e popular. Cabe aos co­munistas empenhar-se no esforço de mobilização da classe operária e demais setores populares para alcançar formas cada vez mais avançadas de democracia e, nesse processo, chegar à conquista do poder pelo bloco de forças sociais e políticas interessadas em realizar as profundas transforma­ções a que me referi acima, e que deverão consti­tuir os primeiros passos rumo ao socialismo, e, portanto, à mais avançada democracia que a humanidade já conhece ? a democracia socialista.

Nós, comunistas, não podemos abdicar de nossa condição de lutadores pelo socialismo, restringindo-nos à suposta ?democracia? que nos querem impingir agora os governantes, nem às conquistas muito limitadas alcançadas pela atual ?abertura?, que na prática exclui as grandes massas populares. Não podemos concordar com uma situação que assegure liberdades apenas para as elites, em que a grande maioria da sociedade continua na miséria e sem a garantia dos mais elementares direitos humanos.

Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores. Ao contrário, para os comunistas, a luta pelas liberdades políticas é inseparável da luta pelas reivindicações econômicas e sociais das massas trabalhadoras. E no Brasil atual, a c1asse ope­rária está dando provas, cada vez mais evidentes, de que não está mais disposta a aceitar a ?demo­cracia? que sempre lhe foi imposta pelas elites e pelas classes dominantes. Os trabalhadores estão passando a exigir sua participação efetiva em um novo regime democrático a ser construído com o fim da ditadura, o que significa que lutarão por uma democracia em que tenham não apenas o di­reito de eleger representantes ao parlamento, mas lhes sejam assegurados melhores salários e condições mais dignas de vida, em que seus direitos sejam uma realidade e não apenas uma ficção. E o dever dos comunistas é dirigir essas lutas dos tra­balhadores, contribuindo para sua unidade, organi­zação e conscientização, mostrando-lhes que é necessário caminhar para o socialismo, única for­ma de assegurar sua real emancipação.

Simultaneamente, apresenta-se a questão da aliança dos comunistas com outras forças sociais e políticas. No momento atual, o objetivo mais importante a ser alcançado é a derrota da ditadura e, para isso, a conseqüente conquista de reivindi­cações políticas que ampliem cada vez mais a brecha já aberta no regime e levem ao estabeleci­mento de uma democracia no país. Não devemos, portanto, poupar esforços no sentido de aglutinar as mais amplas forças sociais e políticas, mesmo aquelas mais vacilantes e que sabemos que nos abandonarão em etapas ulteriores da luta. Seria, no entanto, abdicar de nosso papel revolucionário tratarmos apenas dos entendimentos ?por cima?, com os dirigentes dos diversos partidos políticos ou correntes de opinião, com as personalidades políticas, esquecendo que para os comunistas o fundamental é a organização, a unificação e a luta permanente pela elevação do nível político da classe operária e das massas populares. Só assim contribuiremos para fortalecer o movimento po­pular e a frente oposicionista de luta contra a dita­dura, compelindo seus setores liberais burgueses mais vacilantes e se definirem com mais clareza, e contribuindo, também, fundamentalmente, para que os trabalhadores venham a ser a força diri­gente do conjunto das forças heterogêneas unifi­cadas em ampla frente única.

Só assim agindo, realizarão os comunistas uma política capaz de impulsionar o movimento de massas, uma política que não pode ser a de ficar a reboque dos aliados burgueses, mas, ao contrário, a de não poupar esforços para que as massas assumam a liderança do processo de luta contra a ditadura e pela conquista da democracia, assim como de sua ampliação e aprofundamento continuado.

Não podemos, pois, compactuar com aqueles que defendem ?evitar tensões?, freando a luta dos trabalhadores em nome de salvaguardar supostas alianças com setores da burguesia. Ao contrário, sem cair em aventuras, é hoje, mais do que nunca, necessário contribuir para transformar as lutas de diferentes setores de nosso povo em um poderoso movimento popular, bem como é dever dos comu­nistas tomar a iniciativa da luta pelas reivindicações econômicas e políticas dos trabalhadores, visando sempre alcançar a derrota da ditadura e a conquista de uma democracia em que os trabalha­dores comecem a impor sua vontade.

Com base na argumentação acima desenvol­vida, não se pode deixar de chegar à conclusão lógica de que é totalmente infundada a contrapo­sição, que vem sendo a mim atribuída, entre uma suposta ?frente de esquerda? e uma ?frente demo­crática?? ou de oposição. Jamais coloquei o pro­blema dessa maneira, o que não passa de mais uma deturpação do meu pensamento, útil àqueles que precisam tergiversar minhas idéias para poder combatê-las. Penso que, para chegarmos à cons­trução de uma efetiva frente democrática de todas as forças que se opõem ao atual regime, é neces­sário que se unam as forças de ?esquerda?, ­quer dizer, aquelas que lutam pelo socialismo ­no trabalho decisivo de organização das massas ?de baixo para cima?; que elas se aglutinem, sem excluir também entendimentos entre seus dirigen­tes, com base numa plataforma de unidade de ação, e que, dessa maneira, cheguem a reunir em torno de si os demais setores oposicionistas, tor­nando-se a força motriz da frente democrática. Essa é a perspectiva revolucionária de encaminha­mento da luta contra a ditadura, a que mais inte­ressa à classe operária e a todos os trabalhadores. Será a constituição em nosso país, pela primeira vez, da unidade de diversas forças que lutam pelo socialismo. Colocam-se contra essa possibilidade os que preferem ficar a reboque da burguesia e que buscam, com isso, mais uma vez, chegar em nosso país a uma democracia para as elites, da qual não participariam os trabalhadores.

Quando me refiro à necessidade das diferentes forças de ?esquerda? caminharem juntas, tenho em vista a nova situação que vem se formando no país. Estamos vivendo um período, quando a reanimação do movimento operário e popular vem revelando, por um lado, que todas as forças de ?esquerda?, incluindo o PCB, tem cometido graves erros, tanto de avaliação da situação nacional, como de encaminhamento das soluções necessárias e possíveis e, conseqüentemente, de atuação. E, por outro lado, a necessidade de formação de uma liderança efetiva, capaz de dirigir as lutas de massas dentro de uma perspectiva revolucionária correta e adequada à situação brasileira. Está, portanto, na ordem do dia a questão da unidade de todos os que se propõem a lutar efetivamente por uma perspectiva socialista para o Brasil.

No que diz respeito ao PCB, sou de opinião de que, tendo sido correto combater os desvios ?esquerdistas? e ?golpistas?, após o golpe de 1964, caímos do outro lado, em posições próximas do reboquismo e da passividade. Devemos reconhecer, inclusive, que o PCB não teve a capacidade de apresentar uma alternativa (principalmente uma estratégia) correta de luta contra a ditadura, contribuindo, assim, para que muitos revolucioná­rios honestos, particularmente os jovens que não queriam se conformar com o arbítrio instaurado no país, enveredassem pelo caminho de ações indi­viduais ou desligadas das massas e que só pode­riam conduzir a sucessivas derrotas.

É importante ainda chamar a atenção dos comunistas para o fato de nas fileiras do PCB ter-se convertido a luta justa contra os desvios ?esquerdistas? e ?golpistas? numa obsessão quase cega, que nos tem levado freqüentemente a identi­ficar qualquer atitude ou posição combativa pelas causas justas dos trabalhadores com um suposto ?esquerdismo? ou ?golpismo?.

Tudo isso torna imprescindível que se inicie entre os comunistas, tanto dentro, quanto fora do PCB, um amplo processo de análise autocrítica das posições das diferentes forças de ?esquerda? e, em particular, do PCB. É necessário rever com espí­rito autocrítico a orientação política que manti­vemos em diferentes períodos históricos e, em espe­cial, as resoluções aprovadas no VI Congresso e nos anos que se seguiram. Devemos examinar a que resultados concretos fomos levados pela apli­cação de tais resoluções e fazer um esforço cole­tivo que conduza à elaboração de soluções adequa­das à situação do Brasil de hoje, partindo do princípio de que nosso objetivo final, enquanto comunistas, só pode ser um: a construção da sociedade socialista e do comunismo em nossa Terra. E, para isso, é imprescindível que todos aqueles que queiram contribuir para a vitória desses objetivos unam suas forças e procurem chegar a um programa comum, sem cair nem na cópia de modelos estrangeiros, nem na negação das leis gerais do desenvolvimento social.

Quando me referi à necessidade de formular o programa dos comunistas, tenho em vista chegarmos, através de um processo de discussão efetivamente livre, à elaboração do caminho para o socialismo nas condições brasileiras e à sua aprovação de forma democrática.

Como já tive ocasião de assinalar, a própria prática social vem mostrando o quanto as forças de ?esquerda? estão atrasadas na realização desse objetivo. Não pretendo apresentar nesta carta uma proposta de programa. Sou de opinião que essa tarefa só poderá ser realizada com a colaboração de todos que, em nosso país, estão empenhados na luta pelo socialismo, comunistas ou não, membros do PCB, de outras organizações de ?esquerda? ou ?independentes?.

Penso que o eixo central desse programa deve ser tal que apresente, com a necessária clareza, qual o processo que, nas condições de nosso país, poderá e deverá ligar a luta atual pela derrota definitiva da ditadura e a conquista de um regime democrático com a luta pelo socialismo no Brasil.

Trata-se, portanto, de se enfrentar e dar solu­ção a um conjunto de questões teóricas e práticas de grande complexidade. Questões que só poderão ser elaboradas através do estudo aprofundado das transformações econômicas, sociais, políticas e cul­turais que se vêm processando em nosso país, bem como das novas condições em que se encontra o mundo na atualidade.

Penso que, na elaboração do programa, é necessário partir de algumas idéias básicas que pre­tendo desenvolver posteriormente, para os debates do VII Congresso. Em primeiro lugar, partir do pressuposto de que cabe aos comunistas, desde já, organizar e unir as massas trabalhadoras na luta pelas reivindicações econômicas e políticas que se apresentam no próprio processo de luta contra a ditadura. É partindo dessas lutas, da atividade cotidiana junto aos mais diferentes setores popu­lares, principalmente junto à classe operária, que poderemos avançar no sentido do esclarecimento das massas para que cheguem à compreensão da necessidade das transformações radicais de cunho antimonopolista, antiimperialista e antilatifundiá­rio. É necessário mostrar aos trabalhadores que os grandes problemas que afetam a vida de nosso povo só poderão ser solucionados com a liquidação do poder dos monopólios nacionais e estran­geiros e do latifúndio, e que isso só será conseguido com a formação de um bloco de forças antimono­polistas, antiimperialistas e antilatifundiárias, ca­paz de assumir o poder e de dar início a essas trans­formações. Poder que, pelo seu próprio caráter, significará um passo decisivo rumo ao socialismo. E para que esse processo tenha êxito, é indispensável que a classe operária ? a única conseqüen­temente revolucionária ? seja capaz de exercer o papel dirigente do referido bloco de forças. Mas esse papel dirigente só se conquista na luta. O de­ver dos comunistas é exatamente o de contribuir para que esse objetivo seja alcançado.

Companheiros e amigos!

Esta carta constitui como que a reafirmação da confiança que tenho nos comunistas e na classe operária, na sua capacidade de reflexão sobre a grave situação que atravessa o PCB. Chegou o momento em que é indispensável que os comunis­tas rompam com a passividade e tomem os desti­nos do PCB em suas mãos, rebelando-se contra as arbitrariedades e os métodos mandonistas de dire­ção, e tratando de eleger, em todos os níveis parti­dários, direções que realmente sejam a expressão democrática da maioria dos comunistas. Penso ter evidenciado o quanto tem de excepcional a situa­ção que me levou a formular este apelo a todos os comunistas para iniciar um processo de mudanças radicais que deverá ser coroado com a discussão e aprovação democráticas de uma orientação verdadeiramente revolucionária e a eleição também democrática de um novo tipo de direção à altura desta nova orientação.

Rio de Janeiro, março de 1980.

LUIZ CARLOS PRESTES

 

 

Última atualização em Sex, 16 de Outubro de 2009 16:50