Estas são questões a que um partido revolucionário tem de dar resposta para determinar com rigor a sua posição no combate ideológico e também eventuais convergências e alianças, por mais limitadas e conjunturais que possam ser. Resposta que é tanto mais necessária quando o mundo está confrontado com a ameaça de uma regressão de dimensão civilizacional em que a social-democracia está profundamente comprometida e se impõe unir na resistência e na luta todas as forças que, pela sua situação social e prática política, se integram de facto na ampla frente anti-monopolista e anti-imperialista que, só ela, poderá inverter o rumo destruidor que o capitalismo está a impor à Humanidade.
.
A questão da «social-democracia» é uma questão actual e em certo sentido crucial. Os partidos socialistas – social-democratas – trabalhistas, não obstante a sua reconhecida evolução direitista, continuam a reclamar-se de «esquerda» e a dispor de apreciável expressão eleitoral e real influência em importantes segmentos da classe operária e camadas populares. A luta dos comunistas pela unidade da classe operária e pela hegemonia politica e ideológica da classe operária na luta contra o grande capital, encontra pela frente esta realidade na generalidade dos países capitalistas desenvolvidos, nomeadamente da Europa onde a social-democracia nasceu e mais fortemente se enraizou, mas também na América Latina, África e Ásia. O combate à ideologia da colaboração de classes, ao divisionismo e ao anti-comunismo, perdura como uma exigência central do nosso tempo.
Por outro lado a social-democracia, que surgiu como corrente reformista e revisionista no seio do movimento operário e se desenvolveu como força anti-revolucionária, hostil à Revolução de Outubro e aos países socialistas, transformou-se em força abertamente contra-revolucionária, em componente fundamental do sistema de exploração capitalista e pilar do imperialismo. O «bloco central» («centro-direita» e «centro-esquerda»), a «bipolarização», a «alternância» (do «ora agora governo eu, governas tu, governas tu mais eu»), espelham bem esta realidade. A cavalgada da social-democracia para a direita neoliberal (que mais que «rendição» foi opção consciente e deliberada) aproximou-a, confundiu-a e em certos casos fundiu-a com a própria direita burguesa, de que se tornou uma simples variante. Os entendimentos de incidência governamental ou parlamentar, e em qualquer caso as convergências e coincidências em todas as questões fundamentais – como no caso da integração capitalista europeia, da NATO e sua estratégia agressiva planetária, das políticas de apoio ao capital monopolista contra os trabalhadores – tornaram-se uma banalidade. Os acordos são formais e informais, selados à luz do dia em nome do «interesse nacional» ou em (nem sempre) discretas comezainas de troca de favores. O que não dispensa o habitual recurso e manipulação do binómio «esquerda/direita» sempre que tal sirva para enganar a opinião pública e manter sob a sua influência massas descontentes, sobretudo em períodos eleitorais.
O caso porventura mais evidente de «partido único» bicéfalo é o norte-americano com a dupla Partido Republicano/Partido Democrático, este último erigido, com Clinton, em exemplo da família social-democrata, mesmo não sendo membro da Internacional Socialista. Mas a tendência é geral como, nomeadamente, acontece na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Espanha, na Grécia (1) ou Portugal, e procura-se impô-la e institucionalizá-la com leis que marginalizem os chamados «pequenos partidos» e facilitem a bipolarização, num jogo perverso que visa confundir «alternância» no governo com «alternativa» política, e assim fechar a porta a alternativas verdadeiras.
A verdade é que, no governo ou na «oposição», a social-democracia se tornou parte integrante do sistema de poder capitalista, uma força que, como sublinhou a Resolução Política do XVIII Congresso do PCP, está hoje «estruturalmente comprometida» com os interesses do grande capital. É desta realidade que o movimento comunista e revolucionário tem de partir para concretizar a política de alianças da classe operária.
.
Sem qualquer pretensão de fazer aqui a história da social-democracia, é indispensável assinalar alguns momentos marcantes da sua evolução: de corrente do movimento operário (assim nasceu) a instrumento da grande burguesia; de produto da influência da ideologia burguesa no mundo do trabalho a simples variante do pensamento da classe dominante; de defensora da liquidação («pacífica» e «democrática», claro) do capitalismo e propagandista de um socialismo «democrático» e de «rosto humano», a defensora do capitalismo («humanizado», com «consciência social» e «inclusivo», naturalmente) e do imperialismo, com tudo quanto tal significa de reaccionário e criminoso.
Falamos da social-democracia, claro está, em termos gerais, globais. Falamos da posição política e ideológica adoptada e posta em prática pelos seus chefes e ideólogos. É grande a diversidade dos partidos que a compõem. As condições de lugar e tempo talham em grande medida o perfil dos partidos socialistas – social-democratas – trabalhistas. A social-democracia sempre teve rostos diferentes na Europa Ocidental (há muito hegemonizada pelo SPD alemão e pelo Partido Trabalhista britânico), ou na América Latina, onde, conforme as circunstâncias, tanto adquiriu tonalidades «revolucionárias» de fachada nacionalista, como constituiu instrumento decisivo para servir o imperialismo ianque e derrotar o desenvolvimento de processos democráticos, anti-imperialistas e revolucionários.
Um dos «segredos» da social-democracia reside nas suas características camaleónicas, no seu ecletismo, na sua composição inter-classista, na sua heterogeneidade, na existência no seu interior de diferentes alas e correntes, na capacidade para, segundo as circunstâncias e necessidades, ser um pouco de tudo e o seu contrário. Aquilo que para um partido comunista é mortal (correntes de opinião cristalizadas, grupos, fracções, polémicas públicas) para a social-democracia é um modo natural de ser, indispensável para alimentar a ideia de que a alternativa às políticas de direita se encontra dentro dos próprios partidos socialistas – social-democratas – trabalhistas, mesmo quando praticam uma política claramente de direita e o seu programa é abertamente capitalista. É essa a missão de todos os Alegres deste mundo.
Em qualquer caso a social-democracia não existe nem age no vácuo da luta de classes. Posiciona-se desde sempre, desde o histórico corte revisionista simbolizado por Bernstein (2) («o movimento é tudo, o objectivo final não é nada»), do lado da adaptação, consolidação e reprodução do capitalismo e não hesitou diante dos maiores crimes para cortar o passo a transformações sociais profundas, como aconteceu com a traição da revolução alemã de Novembro de 1918 e a abertura do caminho ao nazismo pela política conciliadora dos dirigentes social-democratas da República de Weimar. O cruel assassinato de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht fica a assinalar uma das páginas mais negras do reformismo contra-revolucionário social-democrata.
Mas o posicionamento prático da social-democracia foi também influenciado pela luta popular de massas, pela pressão das suas bases operárias e pela acção independente dos comunistas. Assim foram possíveis, por exemplo, os grandes êxitos das Frentes Populares, como nos casos da Espanha e da França. Assim foram possíveis, com a projecção poderosa das realizações da URSS e dos países socialistas, os avanços do chamado «Estado social», que nos países nórdicos chegaram a cobrir-se abusivamente com o epíteto de «socialismo nórdico». Foi a acção revolucionária da classe operária e das massas trabalhadoras, antes e depois do 25 de Abril, que empurrou Mário Soares e o PS, entretanto fundado na República Federal Alemã, para posições e convergências à esquerda, que, como rapidamente se veio a comprovar, contrariavam a sua natureza liberal-burguesa.
Porém, sem o envolvimento das massas e o empurrão das suas bases atraídas à unidade da acção com os comunistas, tirando raras e honrosas excepções configuradas por percursos de luta peculiares (como o velho Partido Socialista Italiano de Pietro Nenni, ou o Partido Socialista do Chile de Salvador Allende), a opção das cúpulas social-democratas foi invariavelmente por alianças com os partidos da direita e da reacção para impedir qualquer avanço revolucionário e preservar o sistema capitalista em qualquer das suas variantes, keynesiana, liberal ou mesmo fascista, neste caso até ao momento em que os próprios partidos social democratas se tornaram também vítimas da perseguição e ilegalização, que, numa primeira fase, se direccionara fundamentalmente contra os comunistas.
No que respeita à experiência portuguesa é oportuno recordar – sem ir aos tempos da auto-dissolução do velho e desacreditado Partido Socialista e da colaboração de um seu chefe, Ramada Curto, com Salazar na elaboração da Carta do Trabalho fascista e a posição da direcção do PS português. Passado o curto período de colagem à Revolução, Mário Soares rapidamente se transformou em bóia de salvação do grande capital e pólo aglutinador de todas as forças contra-revolucionárias, e a política de alianças do PS, com excepções localizadas e pontuais, fez-se sempre à direita (3). A assinatura do pacto de agressão pelo PS, PSD e CDS com a troika estrangeira é o corolário lógico da enraizada posição de classe de um partido que, depois de ter «metido o socialismo na gaveta», se tornou uma força política profundamente identificada com os interesses do grande capital e do imperialismo estrangeiro.
Claro que a capacidade, cada vez mais questionada, de haver forças que, como o PS, conseguem ano após ano recuperar o descontentamento de largos sectores da população não vai durar sempre. São previsíveis situações de conflito, enfraquecimento e divisão, e o aparecimento de novas forças talhadas pela agudização da luta de classes. São inevitáveis processos de recomposição do quadro político-partidário, impulsionados pelo desenvolvimento da luta de massas, que abram a possibilidade de a arrumação de forças no plano social encontrar correspondência no plano político.
Em qualquer caso não é com este PS e a sua continuada orientação e prática políticas que pensamos ser possível a política patriótica e de esquerda que preconizamos como via para romper com trinta e seis anos de políticas de direita e avançar na solução dos problemas dos trabalhadores, do povo e do país.
Para concretizar a unidade que a situação reclama não basta uma «guinada à esquerda» num corpo apodrecido pelo oportunismo e pela identificação com o poder económico. Nem sequer, como pretendem o BE, em Portugal, ou o «partido da esquerda europeia» («pee») na Europa, a simples apropriação do espaço eleitoral alienado pela correria para a direita das actuais cúpulas social-democratas. Na prática isso representaria fundamentalmente o fortalecimento de uma «ala esquerda» da social-democracia (que é aquilo que na Grécia, o Syriza é) com a missão de ganhar tempo para travar o avanço de forças anti-capitalistas e revolucionárias, e não a emergência de forças realmente comprometidas com a ruptura com o sistema, ainda que influenciadas por maiores ou menores ilusões reformistas. Nem é preciso ir mais longe do que a questão da integração capitalista europeia – com o «europeísmo de esquerda» do BE, ou a umbilical ligação do «pee» à UE – para rejeitar a ilusão de que seja por aí que possa ultrapassar-se a alienação eleitoral de amplas massas entretanto objectivamente interessadas em politicas anti-monopolistas e na transformação socialista da sociedade.
.
Ao procurar responder à pergunta «o que é a social-democracia hoje?» há uma questão prévia de lucidez e pura higiene mental: rejeitar liminarmente a caracterização desta corrente política como força «de esquerda» e, do mesmo passo, rejeitar uma «unidade de esquerda» que, em nome de um pretenso combate a uma direita «ideológica» e «ultraliberal», apenas serviria para atrasar a unidade necessária e iludir questões de fundo da luta de classes.
É ver, aliás, como por essa Europa fora os partidos socialistas – social-democratas – trabalhistas, sem excepção, estão comprometidos até ao tutano com a ofensiva do capital visando arrebatar aos trabalhadores direitos e conquistas alcançadas por muitas décadas de duras lutas e à custa de pesados sacrifícios. E como desenvolvem uma cooperação estruturada e oficial com os partidos da direita – veja-se o binómio Partido Socialista Europeu/Partido Popular Europeu – para congeminar estratégias comuns e repartir pastas e postas nas estruturas da UE. E por aí abaixo, ao nível dos diferentes países, é o que se vê.
Para chegar até aqui foi preciso percorrer um longo caminho desde o tempo em que, desmascarados por Lénine e pelos jovens partidos comunistas, os velhos partidos da II Internacional se consideram eles os genuínos intérpretes de Marx e Engels, cuja obra entretanto falsificam e despojam da sua essência revolucionária (4).
Neste processo, há momentos paradigmáticos de que aqui se deixam alguns exemplos: a condenação da Revolução de Outubro; a política de «não intervenção» contra a República espanhola capitaneada por Léon Blum; a recusa à cooperação com os comunistas para fazer frente ao ascenso do nazi-fascismo; a ruptura da unidade democrática anti-fascista depois da Vitória na II Guerra Mundial; a activa participação na construção do edifício imperialista da «guerra fria» com o «socialista» belga Paul-Henry Spaak escolhido para primeiro Secretário-geral da NATO; a política colonialista da SFIO em França profundamente responsável pelas guerras da Indochina e da Argélia (1956); o Congresso de Bad-Godesberg do SPD alemão, que, em 1959, oficializa a sua ruptura com o marxismo e o repúdio da luta de classes; a guinada direitista e anti-comunista ligada com as derrotas do socialismo na URSS e no Leste da Europa e a empenhada participação no salto imperialista da União Europeia de Maastricht; a «terceira via» de Tony Blair, liquidando o que ainda pudesse restar da referência operária e da política social do Partido Trabalhista britânico, e a introdução do Partido Democrático dos EUA no redil social-democrata; a conspiração aberta contra a revolução portuguesa sob o disfarce hipócrita da «Europa connosco»; o percurso emblemático de Javier Solana, de dirigente do PSOE espanhol e do poderoso movimento contra a entrada da Espanha na NATO a Secretário-geral desta aliança agressiva; a brutal ofensiva do Governo do SPD Gerard Schröder, «o amigo dos patrões», contra os salários e direitos dos trabalhadores alemães através da «Agenda 2010» e do «Hartz IV» (5); a activa participação dos respectivos partidos socialistas, PS e PASOK respectivamente, no impiedoso processo de extorsão de que os povos português e grego estão a ser vítimas.
A deriva direitista da social-democracia internacional não é um processo linear. Lá onde os partidos comunistas e o movimento operário e popular eram fortes foram possíveis momentos de convergência e cooperação progressista. Mas a contradição entre social-democratas e comunistas que, simplificadamente, era na altura da cisão do movimento operário «reforma/revolução», tornou-se nos dias de hoje «gestão do capitalismo/revolução» e a ideologia da colaboração de classes típica do reformismo acabou por conduzir a social-democracia a tomar partido aberto pelo capital em geral e pelo grande capital monopolista em particular. E nem mesmo nas diferentes formas de gestão do capitalismo – como sucede com a «liberal» ou a «keynesiana» – é já fácil distinguir a social-democracia da direita propriamente dita.
.
Este desonroso percurso da social-democracia internacional é afinal consequência lógica do pecado original seu: o desprezo pelas massas, o temor e negação da revolução, a rejeição da conquista do poder pela classe operária como condição necessária para a liquidação do capitalismo e daí a negação revisionista e oportunista do pensamento de Marx, a começar pela rejeição do conceito de «ditadura do proletariado». Pecado que contaminou importantes partidos comunistas, nomeadamente aqueles que nos anos 70 desenvolveram a linha do «eurocomunismo» e que, começando também eles por abandonar o conceito de ditadura do proletariado, de abandono em abandono – centralismo democrático, papel da classe operária, marxismo-leninismo, internacionalismo proletário – caíram no mais vulgar parlamentarismo e chegaram mesmo à auto-liquidação, como no dramático caso do Partido Comunista Italiano.
A questão do poder e da sua natureza de classe é a questão central da revolução (6). Abandonando o objectivo da conquista do poder pelos trabalhadores e declarando guerra à Revolução de Outubro, os partidos revisionistas da II Internacional colocaram-se objectivamente do lado da contra-revolução. Na época da passagem do capitalismo ao socialismo e em tempos de aprofundamento da crise do capitalismo e agudização da luta de classes, é compreensível que a opção fundadora da social-democracia tenha conduzido à sua transformação em instrumento do capital e pilar do imperialismo.
Notas
(1) Onde sofreu um golpe muito sério em 6 de Maio com o descalabro eleitoral dos dois partidos do «centrão» responsáveis pela tragédia que se abateu sobre o povo grego: o PASOK e a Nova Democracia que nas anteriores eleições somavam 77,5% tombaram para 32,1%.
(2) Bernstein (1850/1932), destacado teórico da II Internacional, pai do «revisionismo», revisão oportunista das teorias de Marx e Engels. Kautsky, que inicialmente o criticou duramente de um ponto de vista marxista, tornou-se por sua vez expoente do revisionismo, tendo sido combatido por Lénine, nomeadamente em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, que se tornou num clássico do marxismo-leninismo. Ver Obras Escolhidas em 6 tomos, t. 4 Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1986.
(3) Ver a obra do camarada Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira sobre a Revolução Portuguesa, A Contra-Revolução Confessa-se, Edições «Avante!», Lisboa,1999
(4) O grande momento de clarificação entre a corrente oportunista e a corrente revolucionária marxista no movimento operário dá-se quando em vésperas da I Guerra Mundial, traindo as próprias orientações e decisões da II Internacional, os deputados da social-democracia alemã votam os créditos de guerra, enquanto na Duma russa os deputados bolcheviques votavam contra e eram deportados para a Sibéria.
(5) Ver em O Militante n.º 308, de Setembro-Outubro de 2010, o artigo «Alemanha, 20 anos de contra-revolução».
(6) Recomenda-se vivamente a leitura e estudo de O Estado e a Revolução, de V. I. Lénine, Edições «Avante!», Lisboa, 2011; e de A Questão do Estado, Questão Central de cada Revolução, de Álvaro Cunhal, 2º de., Edições «Avante!», Lisboa, 2007
*Este artigo foi publicado em “O Militante” nº 319, Julho/Agosto 2012