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Home Artigos A COLUNA PRESTES E A HISTÓRIA OFICIAL: A FALSIFICAÇÃO DA HISTÓRIA


"Luiz Carlos Prestes entrou vivo
no Panteon da História.  
Os séculos cantarão a 'canção de gesta'
dos mil e quinhentos homens da
Coluna Prestes e sua marcha de quase
três anos através do Brasil.
Um Carlos Prestes nos é sagrado.
Ele pertence a toda a humanidade.
Quem o atinge, atinge-a."

(Romain Roland, 1936)


A COLUNA PRESTES E A HISTÓRIA OFICIAL: A FALSIFICAÇÃO DA HISTÓRIA
Escrito por Anita Leocadia Prestes   

Ao considerarmos que vivemos numa sociedade dividida em classes antagônicas, na qual a burguesia detém o poder de Estado e controla os principais meios de comunicação, somos obrigados a reconhecer que a história oficial – aquela que é ensinada nas escolas e difundida pelos principais veículos de divulgação – expressa os interesses dos setores dominantes nesse Estado burguês.

Dessa forma, os “intelectuais orgânicos” (expressão cunhada por Antônio Gramsci) da burguesia, ou seja, os intelectuais que consciente ou inconscientemente servem aos interesses dessa classe são sempre levados a elaborar a história oficial. Abdicam, portanto, de qualquer compromisso com a “supremacia da evidência”, que, para o historiador, segundo Eric Hobsbawm, deve ser o “fundamento de sua disciplina”.[1]

A história oficial da Coluna Prestes – a epopeia brasileira da Marcha que percorreu 25 mil quilômetros pelo Brasil, durante mais de dois anos na década de vinte do século passado, sem sofrer nenhuma derrota, vencedora de dezoito generais do Exército brasileiro, lutando objetivamente contra o domínio do poder de Estado pelas oligarquias agrárias – é mais um exemplo dessa falta de compromisso com a “supremacia da evidência”.

Na minha tese de doutoramento, publicada posteriormente em livro, reeditado em quatro edições[2], pude demonstrar, através de pesquisa realizada em numerosas fontes documentais, que a formação da Coluna Prestes teve lugar no Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, no final de 1924. Em manobra que inaugurou a original estratégia da chamada guerra de movimento, os 1.500 combatentes sob o comando de Luiz Carlos Prestes, então jovem capitão do Exército, romperam o cerco da cidade de São Luiz Gonzaga, constituído por 14 mil homens das tropas governistas, considerado então intransponível. Tinha início a Marcha da Coluna Invicta, à qual, por escolha dos seus participantes, Prestes emprestaria seu nome.[3]

Vencendo toda sorte de dificuldades e sob o fogo constante das forças militares mobilizadas pelo governo de Artur Bernardes, a Coluna Prestes atravessou os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, chegando vitoriosa, em abril de 1925, à região de Foz do Iguaçu no estado do Paraná. Enquanto isso, acossados pelas tropas federais comandadas pelo general Cândido Mariano Rondon, os rebeldes paulistas que haviam se levantado na capital de São Paulo em julho de 1924, sob o comando do general Isidoro Dias Lopes e do major da Força Pública desse estado Miguel Costa, encontravam-se nessa região desde agosto daquele ano. Em contraste com a estratégia que fora inaugurada pela Coluna Prestes, era adotada por eles a chamada guerra de posição, tradicionalmente empregada pelo Exército brasileiro, o que resultara em repetidas derrotas frente ao poderoso inimigo, a mais grave na cidade de Catanduvas.[4]

Durante reunião realizada com a participação de Prestes e dos chefes militares paulistas, ficaria evidente que estes se consideravam derrotados e, na sua maioria, pretendiam optar pelo exílio. Era uma solução inaceitável pelos combatentes da Coluna Prestes que, vitoriosa, pretendia dar continuidade ao périplo pelo Brasil. O major Miguel Costa e alguns poucos chefes paulistas aceitaram os argumentos de Prestes e decidiram incorporar as tropas rebeldes paulistas à Coluna Prestes, então reorganizada com a participação de gaúchos e paulistas.

 

Foi criada a 1ª Divisão Revolucionária, constituída pelas brigadas “São Paulo” e “Rio Grande”. Por ser o oficial mais velho entre os que permaneceram na Marcha, Miguel Costa foi nomeado seu comandante. Prestes seria o chefe do Estado Maior. Devido à liderança por ele exercida, Miguel Costa na prática lhe viria a entregar o comando da Coluna. No Paraná, na realidade, houve a incorporação das tropas paulistas à Coluna Prestes.[5]

Embora as conclusões apresentadas em minha tese de doutoramento sejam de conhecimento público há quase trinta anos, a história oficial insiste em ignorar os acontecimentos relacionados com o rompimento do cerco de São Luiz Gonzaga, a formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul, sua marcha vitoriosa até o Paraná, as derrotas sofridas pelos rebeldes de São Paulo e a incorporação das tropas paulistas à coluna comandada por Luiz Carlos Prestes.

Na medida em que Prestes aderiu ao comunismo e, a partir dos anos trinta, tornou-se a liderança comunista mais destacada no Brasil, as classes dominantes do país e seus intelectuais orgânicos desenvolveram – e continuam a desenvolver – esforços para apagar seu protagonismo na história do século XX e produzir uma história oficial em que tanto a Coluna Invicta quanto outros episódios desse período são deliberadamente distorcidos e falsificados.

Em texto recentemente publicado pelo Instituto Moreira Salles[6], mais uma vez se afirma que “as colunas, unidas, resolveram iniciar uma nova marcha, que se torna o ponto de partida da chamada Coluna Miguel Costa-Prestes”[7], reiterando a versão consagrada pela história oficial, segundo a qual não são reconhecidos os sucessos da Coluna Prestes formada no Rio Grande do Sul, as derrotas dos paulistas no Paraná e a incorporação destes às tropas chegadas do Sul. É a forma encontrada de minimizar o protagonismo de Luiz Carlos Prestes não só à frente da Marcha da Coluna, mas também sua atuação destacada durante os anos que se seguiram, privando as novas gerações do conhecimento de suas propostas e do seu legado revolucionário voltado para a solução dos graves problemas enfrentados pelo povo brasileiro.

Outro exemplo retirado do mesmo texto diz respeito ao episódio protagonizado por Lampião e pelo Padre Cícero, quando o sacerdote atraiu o chefe cangaceiro a Juazeiro do Norte para oferecer-lhe, em nome do presidente Artur Bernardes, a patente de capitão do Exército, assim como dinheiro, armamento, munição e fardamento ao seu bando, com o objetivo de que participasse da perseguição à Coluna Prestes. Segundo o relato de Prestes[8], Lampião optou por não combater os rebeldes da Marcha, afirmação que, contudo, é posta em dúvida no referido texto. Mais um exemplo do empenho da história oficial em promover o descrédito do comandante da Coluna.[9]

Numerosos exemplos de falsificação pela história oficial de acontecimentos históricos que contaram com a participação de Luiz Carlos Prestes e dos comunistas poderiam ser citados. No texto publicado pelo Instituto Moreira Salles, volta-se a repetir o chavão de que Prestes teria apoiado o movimento “queremista”[10], que durante o ano de 1945 demandava uma “Constituinte com Getúlio”, quando pesquisas realizadas em documentos desse período revelam que isso não corresponde à realidade, pois a posição dos comunistas e de Prestes à época era de luta por uma Constituinte livremente eleita e democrática.[11]

Diante do exposto, cabe aos historiadores e aos cientistas sociais, alinhados com a perspectiva de que a produção historiográfica deva contribuir para o avanço dos setores sociais que se batem por um futuro de justiça social e liberdade para toda a humanidade, não poupar esforços no combate às manifestações resultantes de narrativas marcadas pela falsificação da história de acordo com os interesses antipopulares e espúrios dos donos do poder.

Defendamos uma história comprometida com a “supremacia da evidência”, conforme postulava Eric Hobsbawm.

Em janeiro de 2018.

 

 

 


[1] Eric Hobsbawm, Sobre a história (São Paulo, Companhia das Letras, 1998), p.286.

[2] Anita Leocadia Prestes, A Coluna Prestes (São Paulo, Paz e Terra, 1997), 4ª edição.

[3] Ibidem, capítulo III.

[4] Ibidem, capítulo IV.

[5] Idem.

[6] Angela de Castro Gomes, “A República dos bombardeios”, em Angela Alonso e Heloisa Espada (org.), Conflitos: fotografia e violência política no Brasil, 1889-1964 (São Paulo, IMS, 2017), p.149 a175.

[7] Ibidem, p.158.

[8] Anita Leocadia Prestes, A Coluna Prestes, cit., p.245-246, 252.

[9] Angela de Castro Gomes, “A República dos bombardeiros”, cit., p.159-160.

[10] Ibidem,  p.172.

[11] Ver Anita Leocadia Prestes, Os comunistas brasileiros (1945-1956/58): Luiz Carlos Prestes e a política do PCB (São Paulo, Brasiliense, 2010), p. 73-74.

Última atualização em Seg, 08 de Janeiro de 2018 15:44